P.C.M. - médico #5
- Corônicas
- 3 de mai. de 2020
- 2 min de leitura
Uivos ressoam cada vez menos nas noites paulistanas. Os cães, em felicidade extasiante, transbordam serenidade à companhia permanente de seus humanos. Mas a noite não é quieta. Aspiradores de pó vibram na madrugada, rugido máximo da besta da ansiedade sem fim. Choques de vidro em todos os apartamentos, em brindes contínuos, noite após noite, acompanham os frequentes falatórios; e os aumentos de volume da televisão. As ruas também não estão quietas. Corredores margeiam os parques fechados, cada vez em maior número, até altas horas. Jovens passeiam perdidamente, não se importando com nada e idosos se arriscam de fininho, reclamando a pouca liberdade que lhes foi tolhida. Os idosos. Como em uma comunhão de sociedades secretas, escondidos sob as vis máscaras, distribuem olhares uns aos outros, a muitos metros de distância, dizendo mais que muito jornal. Já não reconhecem o seu bairro. Pois à noite, quando fogem dos abutres bem intencionados, não há bancos, não há lotéricas, não há padarias abertas. Os porteiros da noite não os conhecem, esses zumbis encurvados do breu infeliz, e os da manhã evitam o auxílio do dia a dia, negando a companhia antes bem-vinda. Enquanto jovens bem nascidos idealizam o isolamento, escrevendo crônicas e postando no instagram, nossos velhos lamentam a liberdade uma vez mais perdida. Já viveram suas batalhas em outros anos, e sabem que não há beleza na distância forçada. Pois a boa realidade vale muito, e fantasia nenhuma substitui vontades mundanas, se verdadeiras. O trágico seria lhes tirar também a voz. Desacreditar seus anseios, ignorar seus sons de desespero. Se assim fosse, melhor estariam em leitos infinitos de hospitais de campanha, dividindo a luz constante com outro igual, com cateter nasal de oxigênio e cobertores gelados.Teriam alguma prova do real. Por enquanto a voz é livre, e as noites não são quietas. Gritos assombram a cidade.
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