J.M. - médica e uma pessoa #3
- Corônicas
- 18 de jul. de 2020
- 2 min de leitura
Apego
É uma típica quarta-feira no posto de saúde, já estou com o traje fino de profissional da saúde na pandemia, encapotada até o último fio de cabelo, conversando com casos suspeitos de COVID, até que se prove o contrário. Estou em uma repetitiva orientação sobre isolamento domiciliar quando sou interrompida pela urgência no olhar da paciente:
Ela deseja saber o real risco de contágio e morte para uma criança com bronquite, como a filha que possui em casa. Seu rosto me parece em chamas, algumas veias se destacam em sua testa e denunciam o pavor em sua fala, numa sutil ameaça cuja pretensão seria impedir que eu mentisse em minha resposta. No instante seguinte, a sua fisionomia quase assustadora se desaba em prantos, me deixando perplexa demais para esboçar qualquer resposta.
Estou longe demais para tocar seu ombro com a minha mão enluvada, e ela segue soluçando declarações de amor pelos filhos entremeadas pelo medo da perda, trazida pela sombra de um vírus imprevisível e impiedoso.
Seu medo me fez lembrar subitamente de alguém que também me esperava em casa e do quanto seria terrível perder uma vida amada para a sorte de um vírus. O seu desespero era tão evidente que quase poderia tocá-lo: a dor era real, a incerteza também. Devo ter suspirado ou concordado em voz alta, porque subitamente essa mulher levantou os olhos e me viu pela primeira vez por debaixo da roupa de astronauta: ela enxergou o par de olhos marejados que se escorria por baixo do escudo facial, a denúncia de que havia outro ser humano escondido por debaixo daquela máscara grossa e capote de robô.
Confessei meu desejo de abraçá-la naquele momento, o que seria impossível considerando as medidas de segurança a serem respeitadas. Esbocei algumas palavras de consolo, sabendo que seria inútil, porque não estávamos no controle da situação e aquele sofrimento não poderia ser aplacado por alguma frase pronta que eu dissesse – o medo da perda era insuportável para aquela mulher.
Prescrevi medicações para alívio de sintomas, orientei que ficasse isolada de todos em casa e permanecesse atenta para sinais de piora ou sinais de doença nos seus familiares. Foi embora com o nariz escorrendo e algumas lágrimas ainda brotando nos cantos dos olhos.
Fiquei sentada por mais uns minutos, desarmada emocionalmente, de súbito consciente de nossa humanidade e de minha própria vulnerabilidade por debaixo da casca de plástico descartável que vestia. Lembrei da fala de um professor budista, religião que fala exaustivamente sobre o apego como fonte de sofrimento, o que parece ser a grande questão que temos vivido nesses tempos de incerteza:
“Vivi coisas terríveis na minha vida e algumas delas, de fato, aconteceram”
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