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P.C.M - médico #4

  • Foto do escritor: Corônicas
    Corônicas
  • 6 de abr. de 2020
  • 2 min de leitura

O movimento da lanterna era um sinal claro. Encostei o carro e o policial veio lentamente, a máscara na cara, a lanterna-cacetete balançando preguiçosa na mão direita. Parou ao lado da janela. Dentro do carro eu ansiava por aquele momento. Abaixei lentamente o vidro escuro, óculos escuros aviador protegendo olhos severos e determinados. O nariz apareceu aos poucos, escondido logo abaixo pelo distintivo do CREMESP.


- Você é doutor! – e se afastou num passo enorme, rápido. A lanterna acusando meus olhos, tremendo. Parei a janela.


- Sim, você entende não? Por isso não abaixei mais.


- Claro, claro. Me desculpe! Eu... é...


- Fique tranquilo. Passe álcool após eu sair daqui. Passe em tudo.


- Ok. Mas, ... por que os óculos? São oito da noite.


- Proteção. Sua proteção. Vou indo então.


Olhando no retrovisor, diverti-me observando o policial se enlambuzar de álcool, enquanto tirava os óculos escuros e aumentava o volume da Nina Simone. Eu, o sinnerman, mergulhando na noite proibida.


Cheguei algum tempo depois no prédio de uns amigos médicos. Algumas novas carteiradas e alcancei o apartamento. Sapatos fora, aceno de cabeça a distância. Até que nos caiu a ficha e demos o abraço dos contaminados. Duas semanas sem contato físico se evaporaram rapidamente, e o calor da normalidade voltou naquela noite, regada a cerveja e a pizza.


No dia a dia do hospital já era mais difícil. Calculava, a distância, o benefício real do exame físico. Presumia um exame normal para poupá-los de eventual contaminação. A mediocridade da situação não parecia resolver nada, no entanto, e os pecados fluíam pelo carimbo cheio de dúvidas.


Lembro bem o primeiro dia da loucura, os prontos-socorros lotados de medo e de sofrimento, justamente quando dei o último abraço em uma paciente. Me pergunto quão imprudente terei sido. Ela tinha acabado de perder a mãe (sem relação com o vírus), e sua pressão arterial estava altíssima. Veio já medicada e me limitei a conversar. Não a examinei de forma decente, nesta precaução quase insana, e apenas medindo novamente a pressão, constatei sua melhora, conforme o vazio súbito da perda dava lugar ao luto e lágrimas substituíam o excesso de adrenalina. Desabou na minha frente e não pude resistir. Estava de máscara (ela não) e a alertei do risco. Ela não ligou e apertou meus ombros longamente. Saiu agradecida. Eu também, embora com um senso de culpa que perdura até hoje.


Hoje já não me permito luxo semelhante. Três semanas e inúmeros contatos com casos suspeitos depois (na época não havia tido nenhum), sou obrigado a usar a conversa abafada pelo tecido branco como substituto único para o tato. Há cada vez mais surtos ansiosos nas noites de plantão, e a fala tem sido arma útil, senão necessária. No entanto, fica o vazio da mão apertada, do afago nas costas. Vazio que ainda preencho aos encontros com minha casta infectada; mantenho a sanidade. Para os pacientes, apenas a distância. E a loucura.


- Considere-se abraçado – tento dizer. O sorriso débil do paciente por trás da máscara aponta a insuficiência do ato. Sorrio de volta, com os olhos. Almas suspensas no ar condicionado do consultório contaminado. Faz frio demais.

 
 
 

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