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P.C.M. - médico #3

  • Foto do escritor: Corônicas
    Corônicas
  • 29 de mar. de 2020
  • 2 min de leitura

Cidade estranha. As buzinas não param, o barulho estremece tudo, mas as ruas estão vazias. Onde há isolamento o Paraíso se abre convidativo: o conforto é irresistível, e pensamentos perversos são inevitáveis. Não me culpo. Posso finalmente confiar no Google Maps ao sair de carro.


Cidade estranha, de repente todos são solidários e doações surgem aqui e ali. A ausência fez visíveis a todos – ou melhor, audíveis –, a nós que, ao lotarmos qualquer espaço em dias comuns, éramos sombras vagando enraivecidas, olhando aos celulares abaixo do queixo para ignorar o dia a dia, o martelar timpânico de ansiedade e frenesi.


Muito se fala do legado a ser deixado pela pandemia, como o carnaval orgástico após a gripe espanhola. Impossível não duvidar, obviamente, pois pouca gente sabia o que era gripe espanhola há uma semana. No entanto, as doações por ora são reais, os aplausos na janela arrepiam e as panelas fazem crer que uma cidade ainda existe, embora muito estranha. Os sons da cidade de repente valem muito e os decibéis que povoam as ruas agora fluem livres e solitários, ostentando indisputados a mensagem da espécie: há vida no apocalipse moderno.


Nos becos silenciosos restam imutados alguns ecos, murmúrios e ganidos. Alguns seguem a rotina, a maioria por falta de opção, poucos por negação e teimosia. Não consigo evitar admirá-los. Enquanto vivos, guardam a memória sonora da normalidade, surdos para o caos.

No momento, a união vem pelo som e esses surdos foram ainda mais isolados. Quer dizer, de certa forma tornamo-nos também mais surdos. Na ânsia por escutar o mundo esquecemo-nos dos becos e viadutos não residenciais e humilhamos idosos e outros rebeldes. Cidade, tempos estranhos.


Escutamos e vemos o mundo pela janela e pintamos a rotina diária de todos. A rotina paulistana, na verdade, nunca fora tão diversa como agora. As janelas nunca tiveram vida nessa parte do Brasil, e se podia olhar para uma cortina vizinha a noite inteira que ainda assim nos seria incapaz de imaginar algo diferente de uma refeição solitária, uma televisão ligada, um trabalhador exausto. A imaginação é fruto da experiência, e a vida na cidade não ia muito além de se apertar, de se estressar e de ignorar o entorno. Natural que em casa reprisemos a solidão diária.


Mas observo o horizonte iluminado de janelas, o céu escuro como jamais estivera, e consigo, afinal, imaginar a vida por detrás daquelas cortinas, uma de cada cor. Identifico adesivos espalhados por vidros adolescentes, a persiana fechada com malícia pelo casal compelido à intimidade, brinquedos espalhados pela sala, de crianças enérgicas, a enlouquecer os pais com um amor impossível há duas semanas. Posso até sentir o cheiro do bolo fresco e do café passado organizados na mesa com toalha xadrez, e muitos pratos e pires e xícaras, guardados por tanto tempo no armário dos avós.


Divirto-me ao pensar nos voyeurs, quase um sindicato deles, multiplicando-se no anonimato do isolamento. Binóculos devem estar vendendo mais que máscaras e cerveja. Imaginei Janela Indiscreta sendo filmado nesses dias: duraria mais de cinco minutos com tantas testemunhas? Os voyeurs são os olhos de um mundo sequestrado.


Com os sentidos tão limitados pelo confinamento urge o imaginar como redenção. Apesar das circunstâncias, é um presente curioso, ao ouvir e ao olhar através da janela, poder sonhar em uma metrópole como São Paulo.


Estranha e bela cidade.

 
 
 

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