P.C.M. médico #2
- Corônicas
- 29 de mar. de 2020
- 2 min de leitura
Nos centros de saúde da periferia a palavra chegava aos poucos, quase que como notícia velha de círculos sociais restritos. Como que algum vírus iria tão longe se nem mesmo estradas chegam ali inteiras.
Mas o álcool gel havia chegado alguns anos antes, sobretudo nas novas unidades, atraentes pela estética, grandes vitrines políticas. E o vírus poderia nunca chegar, mas o álcool já estava em falta. Não só o álcool, é claro. A televisão, no entanto, canonizava o potinho de gel transparente, e estrelas e outros famosos ensinavam-nos a usar, esbanjando-se sob o liquido sagrado.
Não à toa, residentes vinham a toda hora. A enfermeira na porta, guardiã da unidade presuntivamente contaminada, barrava a entrada de saudáveis no local.
“Não, tia, não quero entrar não, só quero pegar um pouco, posso?”, disse um jovem, apontando para o recipiente marrom escuro que guardava o álcool. Os olhos brilhavam, as mãos em súplica discreta. A enfermeira espirra um pouco nas mãos do adolescente o álcool liquido (o gel já acabara há tempos), que escorre em pingos grossos para o chão. O menino esfregou as mãos, sorrindo, para depois secá-las na calça, cumprimentar o colega que estava na fila logo atrás, e por fim coçar os próprios olhos.
Algumas mães procuravam vacinar seus bebês, outros ainda procuravam exames laboratoriais de tempos normais, mas a fila continuava a aumentar, a cada meia hora. Não haviam queixas. Queriam todos uma parte da água benta que jorrava do graal marrom-escuro com bico comprido. A enfermeira, como um papa pré-reformista, concedia indulgências aos fiéis. Pelo menos não as cobrava. Nos bairros mais ricos já vendiam relíquias mais importantes, pedaços de cura em gel, fórmulas salvadoras com glicerina e cachaça velha.
Na periferia ninguém queria a cura, pois o vírus nunca chegaria. O desespero do mundo, no entanto, salvava-lhes as almas. Como nas missas, agora proibidas, em que todos dividiam o corpo e o sangue de Cristo, podiam novamente compartilhar o destino incerto com o resto de nós. O desespero sempre fizera parte dessa vida.
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