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P.C.M - médico #1

  • Foto do escritor: Corônicas
    Corônicas
  • 29 de mar. de 2020
  • 3 min de leitura

O sol não saiu detrás da faixa cinza do horizonte. Naqueles minutos pré-plantão, eu gostava de tomar café junto aos primeiros raios. A camada de nuvens, porém, seja sinal dos tempos, seja ao acaso, limitou o prazer da alvorada. Voltei ao quarto para lavar as mãos, abrindo a porta com os cotovelos – meus novos dedos – e me mandei para a zona norte. A marginal não tão vazia quanto deveria, mas menos mal cheirosa, abriu-se de forma inédita para mim. Arrisquei um breve arranque de 120 km/h entre radares, um dos raros luxos nesses dias. E, ironicamente, menos perigoso do que andar a pé.

O hospital ainda sem maiores filas, máscaras já encardidas da noite alinham-se atrás da recepção, em rostos cansados. Alguns pacientes continuam a se arriscar em consultórios provavelmente contaminados, por dor nas costas, rinite alérgica, diarreia e vômitos. Alguns por pura solidão. Compreensível. Tempos difíceis esgueiram-se no amanhã, a qualquer momento, a saltar sobre nós, cheio de dentes, o monstro invisível.

Agimos tarde demais. Tradicionalmente envolvidos apenas em brigas sem sentido, irreais, demoramo-nos a assumir o arfante golem a nossa porta. Talvez por isso, a cada porta aberta, a cada olhar assustado (de paciente e médico), o carimbo pesado: a quem atestar? E o carimbo e a caneta frenéticos, tiritando a cada decisão, muitas vezes aleatória, o agente do mal usando minhas mãos, brincando de roleta russa com aquelas pessoas.

Depois do expediente, exausto de filas e de mente, incrédulo com tantos bares abertos, tantas pessoas na rua. Rindo, divertindo-se. Abraços e beijos, toques delicados na pele, na nuca. Podia sentir a textura da pele sob meus dedos, em uma quarentena ainda mais injusta do que eu. Na memória salta a pele fina e frágil da minha avó que já se fora, veludo raro, veludos que, como ela, se viva, são isolados e vistos com debilidade. Esquecemos que todos somos vulneráveis para colocarmos nossos velhos sozinhos nessa categoria. Ou, ainda mais cruel, vemos os idosos como os culpados do iminente colapso do sistema de saúde, eximindo-nos da responsabilidade do contágio e da disseminação.

Pois essa percepção, evidentemente, é dolorosa demais. Ser esse agente do mal, levar a praga adiante, destruir a própria família: nunca tantos indivíduos, dotados da incerteza do contágio, tiveram tanto poder em mãos. A dor é tamanha que se prefere ignorar a realidade. Viver com culpa demanda tempo, e foi-nos imposto essa condição em poucos e caóticos dias.

Nada importava há duas semanas, no mundo ocidental. A ausência de significado, típica de nossa época, tornava tudo fantasioso, ao sabor da megalomania psíquica de cada um. Como o homem ridículo dostoievskiano, nos abstemos da Vida. Ao invés da aspiração suicida, no entanto, preferimos a embriaguez e o narcisismo. Quando despertarmos do nosso sonho, talvez saiamos a procura do outro, imbuídos de compaixão. Conosco também.

Arrependo-me apenas de não ter beijado, abraçado e tocado o máximo de pessoas na última semana. Alguns meses sem contato para um brasileiro - e sobretudo descendente árabe - pode ser enlouquecedor. E também de, como todas as pessoas, ter ignorado o tsunami que se avultava e ter preferido dormir a despertar assustado. Como se o despertar pudesse ser programado e postergado. Como se o rei não estivesse nu. O Brasil está nu. Façamos então o trapo tardio que o vestirá. E rezemos para que não sinta frio.

 
 
 

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