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B. R. - advogada #1

  • Foto do escritor: Corônicas
    Corônicas
  • 3 de abr. de 2020
  • 2 min de leitura

Da minha janela dá pra ver a vizinha.

Os cabelos presos do primeiro jeito, passando o café no coador de pano e enchendo a casa de cheiro de lar.A menininha sentada sonolenta na mesa da cozinha, com a boca suja de Nescau, remexe nos cabelos distraída, enquanto se enche de farelo a cada mordida no pão. Eu tomo um gole de chá e penso no quanto sou boba por nunca ter parado pra olhar essa cena antes. Tenho certeza que ela acontece todo dia. Meus pensamentos são interrompidos pelo som da TV da vizinha. O número de óbitos está aumentando e a orientação é permanecermos em casa.Uma senhora de cabelos grisalhos faz o sinal da cruz e passa a mão com carinho no emaranhado de cabelos da menininha. Eu quase consigo sentir aquele carinho nos meus cabelos. Aqueles dedinhos retorcidos como pequenos galhos de árvore. Meu peito aperta, cozinhando com rapidez um purê de saudade e preocupação. Queria abraçar minha vó, minha mãe, minha irmã, meus tios, meus primos, meus amigos. Eu vou sentindo o peito quente se contrapor às mãos e aos pés gelados e tomo mais um gole de chá pra acolher o medo. Fecho os olhos. Deixo ele me inundar e pertencer a cada poro. Eu me rendo ao medo. Ao medo da perda, da morte, de ser o grãozinho de areia impotente que sou. Sinto os dedos tortinhos da senhora nos meus cabelos. Queria abraçar minha vó, minha mãe, minha irmã, meus tios, meus primos, meus amigos. O tempo pára e todos os sons silenciam. Vejo os rostos das pessoas que eu amo passarem por mim e sinto o cheiro do abraço da minha vó misturado com o café fresquinho da vizinha. Nós nos tornamos um. O medo e eu. Somos feitas de mesma matéria. Só depois de nos tornarmos um. Finalmente podemos nos tornar paz. Eu me rendo à paz, assim como eu me rendo ao medo. Me render foi a lição mais importante que eu já aprendi. Mais um gole de chá e me perco por alguns segundos nesse pensamento enquanto continuo a olhar a cena quadriculada pela rede da janela. Queria abraçar minha vó, minha mãe, minha irmã, meus tios, meus primos, meus amigos. Sinto a paz de já ter podido abraçar cada um deles e agradeço. Vejo a menininha terminar de mastigar o pão. A vizinha percebe que estou olhando praquele café da manhã de todo dia e me dá um tchauzinho. Eu sorrio de volta como se fossemos velhas amigas.

 
 
 

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